O ESPANTALHO
De todas as lembranças que guardava, uma era mais forte, mais presente: em algum dia de sua infância distante, numa roça de milho, vira um espantalho, ossos de pau, corpo de pano, chapéu de palha, braços abertos assustando o nada, uma perna só. Desenhados no rosto disforme, dois olhos grandes, espantados, um nariz maluco e uma boca cheia de dentes inexistentes.
Disseram-lhe, os mais velhos, que era para assustar pássaros e outros predadores do acaso. Assim o fizeram crer. Afinal, os mais velhos afirmam saber muito, quando não tudo... Puseram-lhe medo daquela figura magra, silenciosa e permanente do milharal, algo meio assombrado, misterioso.
Mas de mistério ele gostava tanto que passou a visitar, em tardes sozinhas, o medo que morava entre espigas. Numa dessas visitas ao homem de pau, deu-lhe na telha de conversar com ele. Sentia uma espécie de pena roçar-lhe o coração. Mas qual! Às suas perguntas, o espantalho respondia nada. Nem piscava, tamanho desinteresse pela sua presença.
Levou-lhe doce de mamão, roubado fresquinho na cozinha da avó. Nada! Talvez não gostasse de doces, pensou. Tentou ensinar-lhe uma canção de roda, mostrou-lhe suas bolinhas de gude (todas, até mesmo a favorita!), ofereceu-lhe seus sonhos de ser motorista de caminhão, oficial da marinha e ir comer arroz na China, quando crescesse. Tudo, tudo tentou para ser amigo do espantalho. E nada conseguiu.
Um dia, o menino cresceu. Esqueceu as cantigas de roda, perdeu suas bolinhas de gude, não foi motorista de caminhão nem oficial da marinha. Só foi a China, onde comeu arroz. E continuou a encontrar, vez por outra, figuras magras, silenciosas e permanentes nos milharais do mundo, algo meio assombrado, misterioso...
(Beirute, 18.6.1979)
MINHA MÃE, MEU PAI.
Hoje se comemora, aqui na Espanha, o “Dia das Mães”. No Brasil, elas ainda têm que esperar uma semana, pelo seu “Dia”, pelas homenagens que, em verdade, lhes deveriam ser feitas à cada dia do ano. De qualquer modo, é bonito que tenham um dia especialmente dedicado a elas.
Aprendi, apenas criança, a compreender o extraordinário valor dessa criatura que, na Natureza, se encarrega de aninhar-nos em seu útero, em demonstração extrema de afeto, de amor, de instinto de proteção do filhote que prepara para entregar ao mundo, com suas belezas e alegrias mas, também, com seus perigos e tristezas.
Aprendi da forma mais eficaz, como quem aprende o valor do abrigo quando não o tem, no inverno. Aprendi, com a prematura ausência física de minha Mãe, com a falta que me fez e às suas outras nove crias, a riqueza imensurável que ela representa, em nossas vidas. Aprendi, observando a relação das Mães de meus amigos com eles e com o carinho que também a mim dedicavam, sobre o tesouro que havia perdido.
Quando partiu, entretanto, deixou-me, minha Mãe, alguém que se ocuparia de tentar substituí-la durante muitos anos, na tarefa de ver-me crescer, de zelar pela minha formação, de cuidar que eu sobrevivesse à sua ausência. Essa pessoa transformou-se, por óbvio, na fortuna maior de minha vida e a de meus irmãos e irmãs.
De forma em tudo heróica, teve essa criatura que cumprir não só os deveres que já lhe cabiam mas também os que assumiu, sem que assim escolhesse. Teve que superar muitas vezes a si mesmo, de lutar contra suas limitações para cumprir, quem sabe, compromisso assumido no silêncio de sua alma com aquela que fora a paixão de sua vida.
Essa criatura era meu Pai, que também foi obrigado a me deixar, não sem antes ver a mim e a todos os seus filhos criados e senhores de suas próprias vidas. Pelo que Ele foi, fez e representará para sempre, por seu esforço sobre humano em ajudar seus filhos a superar a dor e o vazio deixado em nossos corações com a ausência de nossa Mãe, eu lembro também dele, hoje, que é o Dia das Mães. Ele, que foi meu Pai, foi também minha Mãe.
(Barcelona, 1 de maio de 2005)