SINHANNA
Eu a conheci já velha, daquela velhice-moça de olhos azuis cristalinos irradiando brilhos de fogueira adolescente, cabelos de seda branca emoldurando a pele de barro moreno que se enrugara o bastante que convém a uma vovó como que saída dos contos de fadas, nem um pouquinho mais, nem um pouquinho menos. Era linda!
Parece-me vê-la: sentada na cadeira de balanço que integrava o salão da colonial casa da fazenda, o vestido austero com alegres bolinhas azuis, ares de nobreza - da nobreza sem títulos mas que se impõe naturalmente a tudo e a todos que a cercam.
Casara menina e recebia o noivo adulto, brincando com suas bonecas. Muitos filhos, uma filha: minha Mãe. Conheceu o fausto e a fartura dos tempos imperiais, viu a República nascer dos escombros do fim da escravidão e envelheceu com a fazenda-lar que durou enquanto ela viveu.
Sua voz ressoa até hoje, em ecos eternos, nos labirintos de minha memória: límpida como as águas das fontes e do riacho que corria perto da casa para abraçar o Paraíba, também vizinho; forte como o vento que parecia sempre pretender dobrar os coqueiros que margeavam a ladeira da capela, santuário da fé dos que habitavam as redondezas.
Suas mãos, que o tempo enchera de sinais marrons, guardavam entre as rugas, carinhos e ternura que me transportavam a um mundo de paz e alegria. Seu colo era um ninho de incomparável conforto e calor. Talvez muito disso se deva à sua origem luso-africana, um pouco ao grande amor que sinto por ela e quase tudo à ela mesma: Anna, Sinhá Anna, Vovó Sinhanna!
VIAGEM
A Fazenda não era um lugar comum e nada era comum na Fazenda. Tudo lá me envolvia num bucólico e misterioso bem-estar. Talvez fosse o perfume das origens...
Não era de grande extensão mas parecia infinita aos olhos e pés descalços do menino que a visitava, regularmente. Não havia momento mais esperado do que aquele em que nosso Pai nos anunciava: "Amanhã, vamos à Fazenda de sua Avó!" Era festa, reboliço, ansiedade!
Não se dormia direito na noite que antecedia a partida e, madrugada ainda, sereno começando a fugir do sol que despertava, embarcávamos na carroceria da velha caminhonete, enroscados uns nos outros como só irmãos pequenos sabem fazer, confortados por colchões e travesseiros estrategicamente postos pelo Pai. E partíamos!
Estrada de terra, parando raramente - quando a carruagem que nos levava ao país dos sonhos apresentava algum defeito ou quando alguém precisava regar capim, íamos acordando o dia com canções crianças como nós, até hoje lembradas.
Brigas, risos, pazes, lágrimas, tudo acontecia durante a viagem que parecia acabar nunca tamanha era a vontade de chegar. E a valente caminhonete corria por entre vales sonolentos, serpenteava com os caminhos das montanhas.
Havia um momento fantástico: quando, do alto de uma serra, avistávamos o Paraíba, que naquele tempo não padecia da fome d'água como hoje em dia. Era fatal! Todos gritavam em coro: "Olha o rio da Vovó! O rio da Vovó!" Depois desse instante, tudo, aos nossos olhos - que se iluminavam de querer - era da Vovó: os campos, as porteiras - tão gostosas de abrir, tão resmunguentas - as vacas, os bois, cães que nos saudavam em latidos familiares! E nós nos agitávamos mais ainda. Era um doce sofrimento, a expectativa de alcançar os portões da Fazenda!