A FIGUEIRA
Toda Fazenda que se preza tem uma figueira assombrada. E a de Santanna se prezava, e muito. Assim é que a figueira, com seu grosso tronco, guardava - qual sentinela secular - o portão de entrada.
Antiga, ninguém jamais disse quanto, pois a memória de várias gerações é muito menor que a de uma árvore. Já estaria ali, esperando, antes que os primeiros humanos se acercassem. Esperando para se tornar assombrada dos homens, como convém a uma boa figueira.
Verdade ou não, o fato é que uma cruz de ferro havia sido colocada por Tio João em seu tronco, alto o suficiente para ser intocável. Diziam que era para afugentar almas penadas. Ou pelo menos, consolá-las.
Era ali, sentados nas pedras emolduradas pelas raízes, rodeados de sapos, grilos e pios de coruja, que nos reuníamos para ouvir e repetir estórias de mulas sem cabeça, mão pelada, assombrações que excitavam nossas mentes de crianças, povoavam - não raro - nossos sonhos, e nos faziam caminhar ligeiros, juntos, olhos arregalados para todas as sombras da noite, de volta ao casarão.
A figueira ficava lá. Com suas almas penadas... Com sua cruz...
TERRA-GENTE
Certas pessoas têm um poder estranho: exercem uma influência tão grande sobre tudo e todos ao redor que o próprio lugar onde vivem passa a ser uma extensão delas, como se dependentes da vida que as anima. Era o caso de Sinhanna.
A Fazenda de Santanna respirava pelos seus pulmões, via pelos seus olhos, falava pelos seus lábios. e quando ela realmente envelheceu, dessa velhice-velha de olhos sem brilho, a Fazenda - com todo seu corpo feito de árvores, casarão, capela, pavilhão, riacho, pomar, curral, mangueira, bambuzal, tudo - envelheceu também, foi ficando cega, foi ficando muda... Lealdade de terra-gente!
Quando Sinhanna morreu, o espírito da Fazenda abandonou seu corpo... E hoje o que resta são ruínas. Até mesmo o Paraíba, por outras razões, se diga, está morrendo.
E quem for ao lugar onde um dia viveram Sinhanna e sua Fazenda - e onde hoje mora a morte - há de certamente ouvir o velho rio resmungando estórias e histórias barrentas, ao largo...
E talvez escute risos cristalinos junto à figueira que diziam assombrada. Que não se assuste, pois é minha alma de criança guardando as ruínas do país dos sonhos de minha infância.
(Dacca, Bangladesh, 13.7.1976)