ZECA, O MOTORISTA. 

Cansado de tentar entender o que levou nosso país ao estado de calamidade política atual e as razões pelas quais parece não conseguir sair do atoleiro ético em que se encontra, esgotadas as buscas entre os pareciam ou deveriam ter as respostas, decidi finalmente recorrer a quem, na voz do povo, costuma saber de quase tudo.

Trata-se de Zeca, o motorista. Em seu labor diário de levar pessoas aos seus destinos, aprendeu – quase por inevitável – a escutar as idéias de seus fregueses. Sabe o que pensa a maioria deles a respeito dos temas que, geralmente, afligem ou alegram a comunidade. 

Escutou muitas vezes palavras de carinho e juras de amor eterno por parte de jovens enamorados, reclamações de noras, acusações de sogras, brigas de irmãos, pedaços de mistérios, planos de políticos. Muitos de seus clientes, mesmo por primeira e última vez, o elegem depositário de suas confidências, de suas opiniões.

O Zeca tem uma aura de velho sacerdote, aquele de quem se acreditava guardaria os segredos do confessionário. Talvez por isso se lhe diga tanto ou  quem sabe, tudo não passe da necessidade que o ser humano tem de se revelar, de se abrir para outro num mundo em que, cada vez menos, parece existir o “outro”.

O fato é que o Zeca sabe! E mais, gosta de contar o que aprendeu ouvindo muito, como recomendam os sábios. E quando o faz, é com a simplicidade de seu apelido, sem o tortuoso rebuscamento dos cientistas políticos, dos doutores em economia, dos mestres das teorias inexeqüíveis. Diz, se perguntado e às vezes não, exatamente o que pensa. Nem mais, nem menos.

Por isso, quando lhe pedi sua opinião sobre por que o país fede como fede, foi direto e esclarecedor: “Os três poderes da República têm que ser independentes, para que ela seja forte e honesta. Hoje, os três estão unidos e presos pelo rabo.” Duras palavras, bela verdade.

 

(Barcelona, 17.9.2005)

 

MERGULHAR NA VIDA 

Nascemos com a nascente do rio chamado Vida e seu percurso é nosso caminho pela existência. Em pequenos riachos ou grandes correntes, a cada um de nós cabe o destino de seguir com as águas, mansas geralmente na infância,  ousadas na adolescência, turbulentas na maturidade e,  quanto mais se aproximam do grande mar da Morte, de sua inexorável foz, novamente mansas.

Há duas distintas maneiras de se viver o rio: uma delas é permanecer todo o tempo nas águas rasas de suas margens e deixar que elas nos levem, sem grandes riscos ou medos mas também sem emoções maiores, sem respostas que nos permitam compreender seus segredos; essa é a opção dos fracos, dos frágeis, dos acomodados. 

A outra é buscar o centro do rio, onde as águas são profundas, rápidas e perigosas. Lá, mergulhar vez por outra e conhecer seu leito, aprendendo assim,  em seus trechos turvos ou límpidos,  a conviver com as dores e as  alegrias que lhe são inerentes. Mais ainda, nadar de quando em quando contra a corrente e descobrir, dessa maneira, a verdadeira força das águas,  seus mistérios.

Ora, dirá, para que tudo isso? Por que se arriscar se, no final, chegaremos todos igualmente à inescapável foz, os bravos e os covardes? Eu lhe direi: no final da vida o que verdadeiramente importa é saber como se viveu, ter consciência de que se percorreu os caminhos do rio de forma tão apaixonada quanto possível,  malgrados os riscos, apesar dos medos! 

A Vida só terá valido a pena se foi bem vivida, se foi intensa, se foi verdadeira. É preciso ousar fazer perguntas e aprender a aceitar a leveza ou o peso das respostas; é preciso mergulhar nas pessoas para sabê-las, de verdade. Muitas vezes descobriremos que, por baixo das aparências, a realidade é outra e nem sempre agradável. Melhor, no entanto, ter os pés sobre o chão duro da verdade do que no macio lodo dos pantanais da ilusão.

O destino das águas é o mar e de lá voltarão em forma de chuva que fecundará novamente a terra, transformando-se em novo riacho, em novo rio. Também as vidas não se perdem ao chegar a morte e de lá regressam, em novas nascentes. Voltam sempre mais fortes e seguras de si mesmas, se souberam viver bem a vida que passou, se conheceram a fundo o rio por que passaram.

 

( Barcelona, 11.9.2005)