DON  PEPE

De todos os lugares onde vivi ou por onde passei,  a lembrança mais duradoura, mais valiosa, será sempre a de pessoas que, de uma forma ou de outra, enriqueceram minha vida, algumas apenas por terem passado por ela.

Provavelmente jamais esqueça da Acrópole, das Pirâmides, do Ganges e do Brahmaputra, do Anapurna no Himalaia, dos palácios visitados, dos templos dourados na Tailândia e da beleza de seu artesanato, dos delicados jardins japoneses, dos telhados, varandas e portas de Barcelona, da vitoriana Cingapura, da Renascença em Roma, Veneza, Milão e Florença, da primavera suíça no Parc des Cropettes, do Vale dos Reis, das montanhas nevadas do Líbano e dos desertos silenciosos do Egito, das canções, gaivotas e vinhos junto ao Sena, do Louvre, do Prado e dos Museus de Atenas e Cairo, da cozinha chinesa em um barco em Hong Kong, dos canais de Amsterdã e casas quietas de Copenhague, das mulheres sem rosto em Casablanca, das ladeiras e do bondinho de São Francisco, do Hide Park despertando em flores, das ruas antigas de Toledo e das praças de Madri, do Ramna Park em Bangladesh e de tantos outros lugares. Nada disso, no entanto, me terá feito melhor, apenas mais informado. 

Foram pessoas humildes, muito mais que os poderosos que cruzaram meu caminho, que realmente deixaram em minha alma, como um legado precioso, parte de seus tesouros, de suas almas. Assim foi, por exemplo, Don Pepe.

Era setembro de 2001 e eu tinha acabado de me mudar para meu apartamento em Barcelona. Dei-me conta, de imediato, que havia um  problema de vazamento na instalação hidráulica, que não consegui consertar. Saí pela vizinhança, procurando um profissional que pudesse se ocupar do assunto. Depois de muito caminhar, já quase desistindo, resolvi perguntar a um senhor por quem passava, zelador de um prédio.

Cabelos grisalhos e magrinho, indo para os setenta anos talvez, rosto que dizia da vida que já havia vivido. Era um rosto bom. Era Don Pepe. Explicou-me, pacientemente, não haver profissionais disponíveis por perto e deu-me a direção, em outro bairro. Percebendo, no entanto, a difícil situação de recém chegado em que eu me encontrava, ofereceu-se para, depois que saísse de seu trabalho, passar por minha casa e ver se podia fazer alguma coisa, oferta que aceitei, agradecido.

Mais tarde, como prometeu e para meu alívio, visitou-me. Identificou o problema e disse que seria necessário comprar peças de substituição às danificadas. Ofereceu-se para comprá-las, quando viesse para seu trabalho, no dia seguinte. Depois disso, viria novamente à minha casa e me ajudaria a fazer sua instalação, o que fez, resolvendo o problema.

Quando lhe perguntei, agradecido, quanto deveria pagar-lhe por seu serviço, olhou-se com seus olhos brilhantes e bons e disse: “Nada”! Percebendo minha admiração, acrescentou: “Gostaria, no entanto, que cada vez que vier a me encontrar, a partir de hoje, me cumprimentasse.”

Não sei se voltarei a encontrar Don Pepe, após deixar Barcelona. Estou seguro, no entanto, de que jamais o esquecerei.

 

(Barcelona, 25.6.2006)

 

NAWAB ALI  KHAN (II)

Em outras ocasiões, Nawab demonstraria novamente  seu extraordinário caráter, seu valor.  Numa delas, por exemplo, eu havia saído de recepção no Palácio de Governo em Dacca e, após livrar-me do terno e gravata em casa, dirigi-me ao parque, para minha caminhada.

No trajeto, encontrei Nawab, Syed, Rahman e outras crianças, que jogavam bolinha de gude, na calçada descalçada pela pobreza. Tal e qual na minha infância, em Marquês de Valença! Quando me viu, Nawab me chamou, contente e me convidou para jogar com eles. De início, surpreendido pelo convite que não ouvira há décadas, relutei. Depois pensei: eu já não devo ser bom nisso... Mas, que diabos, era um convite irrecusável! Só havia um problema, eu não tinha bolinhas para jogar.

Nawab não aceitou o argumento e, oferecendo-me uma de suas bolinhas de gude, convenceu-me. E lá me vi, de joelhos na calçada de terra de Dacca, Bangladesh, jogando um dos jogos de minha infância! Alguns minutos depois, passa em carro oficial o Ministro dos Negócios Estrangeiros de Bangladesh, com quem me encontrara, poucas horas antes, na tal recepção. De dentro do carro, atônito, reconheceu-me! E passou. Eu continuei a jogar, feliz da vida e saboreando o olhar estupefato do pobre Ministro!

Por sorte talvez de velho jogador, ganhei de Nawab! Comemorei como se deve e, agradecendo-lhe, tentei devolver-lhe a bola de gude que me havia emprestado. Para minha admiração, mostrou-se ofendido e insistiu que eu a conservasse, já que havia vencido. Assim manda a regra do jogo de bolinha de gude, em Marquês de Valença e em Dacca.

Foi absolutamente extraordinário, o fato de que um menino de rua de um dos países mais pobres do mundo insistisse em pagar seu débito a quem tinha tanto mais que ele e que era, em verdade, seu devedor! Admirado e cheio de respeito pelo caráter demonstrado por Nawab, aceitei sua imposição. Não tenho mais comigo a bolinha de gude mas jamais esquecerei do gesto de nobreza de Nawab Ali Khan.  

 

(Barcelona, 17.6.2006)