O JUIZ E O GALO
Era 1980 e eu vivia e trabalhava em Beirute, no Líbano. O país, em plena guerra civil, era palco de violentos combates entre as diversas facções libanesas e entre algumas delas e palestinos, sem contar as permanentes incursões dos israelenses, que resultariam afinal na invasão do país, em 1982.
Apesar de tudo, do risco permanente de morte a qualquer momento do dia ou da noite, já que os milicianos não tinham hora fixa nem lugar exato para suas operações, eu era feliz. Embora contraditório, eu tinha um grande motivo para isso: estava apaixonado.
Além disso, morava numa belíssima casa nas encostas das colinas de Baabda e, da varanda em arcos e gerânios, podia ver grande parte de Beirute e, ao fundo, o Mediterrâneo do que, ao pôr do sol, me enamorava.
Um dia, meu vizinho e amigo, além de proprietário de minha casa, Joseph Yazigi, então Juiz da Suprema Corte e depois Procurador Geral no Sul do Líbano e autor do “La Guerre Libanaise” (Ed. Messidor, Paris, 1991), perguntou-me se podia fazer um pequeno galinheiro, com “algumas poucas galinhas que lhe dessem ovos frescos” no nosso jardim comum, sem cercas.
Concordei, e tudo correu bem até o dia em que ele resolveu dar companhia masculina às solitárias aves, acrescentando um jovem galo ao seu galinheiro. O impetuoso e novo “vizinho” tinha o peculiar hábito de cantar seu canto, a plenos pulmões, nas horas ímpares da madrugada! Uma, três, cinco horas e ele me acordava com suas escandalosas manifestações de virilidade com que, certamente, queria impressionar seu harém. Não me deixava mais dormir, o que nem os constantes bombardeios e até mesmo esporádicas bombas que caíam por perto, tinham conseguido!
Algum tempo depois, Joseph e eu tomávamos um café em minha varanda. Em dado momento, resolveu perguntar-me se as galinhas estavam me incomodando. Era minha chance: disse-lhe que as galinhas não, mas que o galo, sim. E expliquei porquê. Ouviu atentamente e, com a serenidade que fica bem a um bom juiz, sentenciou: “Carlos, se o galo está incomodando assim, mate-o!” Olhei-o nos olhos, recoloquei a xícara com café sobre a mesa, pedi-lhe licença, levantei-me, fui até o galinheiro, peguei o pobre galo e o entreguei à cozinheira, com a recomendação de que queria comê-lo no almoço daquele dia. “O pescoço”, deixei bem claro.
Voltei para a varanda e, ante o olhar um tanto estupefato do meu querido amigo e vizinho, respondi-lhe à pergunta sobre o que tinha ido fazer: “Fui cumprir uma ordem judicial”, lhe disse. E passamos a outros assuntos.
Enganam-se os que afirmam que “carne de pescoço é ruim”. Estão certos os que dizem que “decisão de um juiz não se discute, cumpre-se!”
(Barcelona, 30.7.2006)
A ARTE DE FAZER INIMIGOS
Tudo que se faz na vida requer ciência ou arte, por mais simples seja o que se faça. Fazer amigos, como todos sabem, exige conhecimento da natureza humana e virtudes capazes de atrair ao coração, o objetivo de seu desejo e afeto.
Fazer inimigos, por outro lado, exige sincero ou pretendido desconhecimento da alma do homem e defeitos e atitudes que consigam manter o objeto de seu ódio, ainda que à distância, ligados à sua mente e, sem que se pretenda, ao seu destino.
A intolerância, o preconceito, a deslealdade, o fanatismo, a inveja, a cobiça, o egoísmo e o orgulho são algumas das características dos que se dedicam à arte de fazer inimigos.
O conflito entre os israelenses e seus vizinhos desnuda a alma de seus atores e revela o enorme talento de cada um deles na ignóbil arte. Cegos pelo orgulho, são incapazes de reconhecer seus papéis e dar-se conta de suas responsabilidades na tragédia que produzem, dirigem e na qual atuam, com esmero de assassinos e suicidas.
Os deuses que veneram e em nome dos quais combatem não são o verdadeiro Deus de todos os homens. São deuses menores, divindades nascidas nos cantos tenebrosos do espírito humano, projeções virtuais de suas fraquezas mais torpes.
A vida de uma única criança, libanesa, palestina ou israelense, vale mais do que todas razões alegadas, todos os motivos pretendidos para o miserável conflito. Quem sabe uma das inúmeras pequenas vítimas de ambos os lados não viria a ser um grande cientista, um grande líder, um grande poeta?
Criem juízo, tomem vergonha e vençam seus verdadeiros e mais perigosos inimigos: vocês mesmos! Perdoem-se pelo passado e construam juntos o futuro que dizem querer para seus filhos, de Paz, Saúde e Progresso.
(Barcelona, 23.7.2006)